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Set-Dez 1999, n° 12, pp. 5-21. Version française : Former les enseignants dans des contextes sociaux mouvants : pratique réflexive et implication critique, Université de Genève, Faculté de psychologie et des sciences de l'éducation. 1999 |
Formar professores
em contextos sociais em mudança
Prática reflexiva e participação
crítica
Philippe Perrenoud
Faculdade de Psicologia e Ciências da
Educação
Universidade de Genebra
1999
Tradução de Denice Barbara Catani
SumárioA escola pode ficar imóvel em contextos sociais em transformação ?
Primeiro, as competências de base
A prática reflexiva como domínio da complexidade
A participação crítica como responsabilidade da cidadania
Formadores reflexivos e críticos para formar professores reflexivos e críticos...
As sociedades se transformam, fazem-se e desfazem-se. As tecnologias mudam o trabalho, a comunicação, a vida cotidiana e mesmo o pensamento. As desigualdades se deslocam, agravam-se e recriam-se em novos territórios. Os atores estão ligados a múltiplos campos sociais, a modernidade não permite a ninguém proteger-se das contradições do mundo.
Quais as lições que daí podem ser tiradas para a formação de professores? Certamente, convém reforçar sua preparação para uma prática reflexiva, para a inovação e a cooperação. Talvez importe, sobretudo, favorecer uma relação menos temerosa e individualista com a sociedade. Se os professores não chegam a ser os intelectuais, no sentido estrito do termo, são ao menos os mediadores e intérpretes ativos das culturas, dos valores e do saber em transformação. Se não se perceberem como depositários da tradição ou precursores do futuro, não saberão desempenhar esse papel por si mesmos.
Prática reflexiva e participação crítica serão entendidas aqui como orientações prioritárias da formação de professores. Mas, antes de desenvolver essa dupla tese, questionemos, de início, a própria idéia de que as transformações da sociedade clamam automaticamente por evoluções na escola e na formação de profissionais.
O bom senso leva a pensar que, se a sociedade muda, a escola só pode evoluir com ela, antecipar, até mesmo inspirar as transformações culturais. Isso significa esquecer que o sistema educativo beneficia-se de uma autonomia relativa (Bourdieu e Passeron, 1970), e que a forma escolar (Vincent, 1994) é em parte construída para proteger mestres e alunos do furor do mundo.
Sem dúvida, os professores, os alunos e seus pais fazem parte do mundo do trabalho e, evidentemente, da sociedade civil. Assim, por meio deles, retomando a fórmula de Suzanne Mollo (1970), a sociedade está dentro da escola tanto quanto o inverso. No entanto, a escola não poderia cumprir sua missão se mudasse de finalidades a cada mudança de governo e tremesse sobre suas bases cada vez que a sociedade fosse tomada por uma crise ou por conflitos graves. É importante que a escola seja, em parte, um oásis e que ela continue a funcionar nas circunstâncias mais movimentadas, mesmo em caso de guerra ou de grande crise econômica. Ela permanece, senão um "santuário", pelo menos um lugar cujo estatuto "protegido" é reconhecido. Quando a violência urbana ou a repressão policial chegam às escolas, os espíritos ficam chocados.
A escola não tem vocação para ser o instrumento de uma facção, e nem mesmo de partidos no poder. Ela pertence a todos. Até mesmo os regimes totalitários tentam preservar essa aparência de neutralidade e paz. Compete ao sistema educativo encontrar um justo equilíbrio entre uma abertura destruidora dos conflitos e sobressaltos da sociedade e um fechamento mortífero, que o isolaria do restante da vida coletiva.
Um outro fator intervém: a despeito das novas tecnologias, da modernização dos currículos, da renovação das idéias pedagógicas, o trabalho dos professores evolui lentamente porque depende pouco do progresso técnico, porque a relação educativa obedece a uma trama bastante estável e porque suas condições de trabalho e sua cultura profissional instalam os professores em rotinas. É por isso que a evolução dos problemas e dos contextos sociais não se traduz ipso facto por uma evolução das práticas pedagógicas.
Um viajante que voltasse à vida depois de um século de hibernação veria a cidade, a indústria, os transportes, a alimentação, a agricultura, as comunicações de massa, os costumes, a medicina e as atividades domésticas consideravelmente mudadas. Entrando numa escola, ao acaso, encontraria uma sala de aula, um quadro-negro e um professor dirigindo-se a um grupo de alunos. Sem dúvida, o professor não estaria mais de "sobrecasaca" ou de avental. Os alunos não estariam mais de uniformes ou de tamancos. O professor teria descido de sua cátedra e o visitante acharia os alunos impertinentes demais. Uma vez começada a aula, talvez ele percebesse alguns traços de uma pedagogia mais interativa e construtivista, de uma relação mais calorosa ou igualitária do que na sua época. Mas, a seus olhos, não haveria nenhuma dúvida de que encontrava-se em uma escola.
Talvez houvesse um computador na sala, conectado a uma rede. Mas o visitante observaria que ele é usado para propor exercícios na tela e preparar conferências "surfando" em páginas da Web. O triângulo didático estaria no lugar, imutável e os saberes eruditos, muito pouco modernizados, ali onde teriam passado a matemática dos conjuntos ou a nova gramática.
A escola existe nas sociedades agrárias como nas megalópoles, sob os regimes totalitários, como na democracia, nos bairros elegantes e nas favelas e apesar dos equipamentos desiguais, dos professores mais ou menos formados, dos alunos mais ou menos cooperativos, as semelhanças saltam aos olhos.
Por que seria preciso formar os professores de outro modo se o seu trabalho é imutável ou quase? Muda-se o ofício de padre no ritmo que muda a sociedade? A matemática, a língua, as outras disciplinas, as notas, as lições de casa, as punições sobrevivem a todos os regimes e atravessam todas as crises. Não basta continuar a formar professores que sabem um pouco mais do que os seus alunos e mostram um pouco de método para transmitir seu saber? Sem excluir toda transformação curricular ou tecnológica, por que diabos se mudaria de paradigma? Esse que prevalece permite escolarizar as massas sem pagar muito caro pelos professores. Não é assim mesmo?
Que muitos jovens saiam da escola pouco instruídos, às vezes iletrados, a quem isso incomoda concretamente, entre os privilegiados? A ignorância dos outros é como a fome no mundo: cada um deplora esses flagelos e continua a dedicar-se às suas ocupações. A "miséria do mundo" (Bourdieu, 1993) não impede a Terra de girar e só faz sofrer verdadeiramente aqueles que são suas vítimas diretas. Alguns dos nossos contemporâneos ainda pensam, sem ousar mais dizer em voz alta: se todos fossem instruídos, quem varreria as ruas? Outros não vêem porque dispensar a todos formações de alto nível quando os empregos disponíveis não o exigem.
Minha argumentação não é cínica. Ela visa somente a demonstrar que a vontade de mudar a escola para adaptá-la a contextos sociais em transformação, ou melhor, democratizar o acesso ao saber, não é bem partilhado e que essa vontade freqüentemente é frágil e se limita a discursos que não passam à ação.
Hoje, é de bom-tom preocupar-se com a eficácia, a eficiência e a qualidade da educação escolar. Não nos enganemos: o objetivo é conservar o adquirido, gastando menos, uma vez que os Estados não têm mais os meios de desenvolver a educação como nos tempos de crescimento. Fazer melhor com menos; tal é a divisa dos governos há alguns anos.
Quem faz absoluta questão de que o sistema educativo mantenha todas as suas promessas? Quando a sociedade se preocupa verdadeiramente em elevar o nível cultural das gerações, em geral, é para responder à demanda de educação dos pais das classes médias. Uma vez que obtenham o que querem, isto é, o acesso aos percursos escolares que permitem às suas crianças enfrentar os estudos superiores, a escola lhes parece cumprir a sua missão. A democratização dos estudos atingiu, hoje, um limiar que, em numerosos países, coloca as classes médias ao lado dos favorecidos. Os desfavorecidos são menos numerosos, mas ainda mais desfavorecidos do que antes. Sua expressão política tem uma influência limitada, não somente porque são imigrados sem direitos políticos, mas mais globalmente porque sua pobreza e seu escasso nível de instrução não lhes dá muitas oportunidades de se fazer ouvir e nem mesmo de compreender os mecanismos que fabricam o fracasso escolar de suas crianças. O cúmulo da alienação, sabe-se bem, é sentir-se o único responsável por sua situação infeliz, de vê-la como conseqüência "lógica" e portanto "justa" de sua própria incapacidade de vencer.
Praticamente não existem forças sociais importantes para exigir uma escola mais eficaz. Paradoxalmente, são certos governos e alguns meios econômicos lúcidos que medem os riscos de uma escola inerte e parcialmente ineficaz. Eles podem contar com o apoio ativo de certas organizações internacionais, de movimentos pedagógicos, da pesquisa em educação e das "forças de esquerda".
Não é verdade que o contexto de transformação em que se encontra a escola produza mudanças automáticas. Esta transformação deve ser lida e decodificada para incitar a escola à mudança. Ora, os professores e os pais que se apegam ao status quo não tem nenhum interesse em fazer essa leitura. Por outras razões, todos os que acham que a escola custa caro demais e que os impostos são muito pesados colocam-se no campo dos conservadores. As forças que querem adaptar a escola à evolução da sociedade então são pouco numerosas e constituem uma aliança instável. Em outras palavras, a idéia de que a escola deva formar o maior número de pessoas levando em conta a evolução da sociedade não é combatida abertamente, mas ela só é um princípio motor para aqueles que a tomam verdadeiramente a sério e fazem disso uma prioridade.
Seria, então, absurdo sustentar que porque a sociedade muda, a escola vá mobilizar toda sua inteligência e segui-la, isto é, antecipar essas mudanças. Sem dúvida, as evoluções demográficas, econômicas, políticas e culturais transformam os públicos escolares e as condições de escolarização e acabam por obrigar a escola a mudar. Ela se adapta, então, mas o mais tarde possível, de modo defensivo. Na ausência da adesão massiva das pessoas da escola a uma política de educação visionária e audaciosa, a mudança social adquire, antes de tudo, aparências de uma imposição a ser ignorada pelo maior tempo possível.
Os numerosos atores e grupos sociais que não mantêm nenhuma ambição nova com relação à escola e, além disso, não têm mais a impressão de que ela fracasse em suas missões tradicionais, não têm nenhuma razão de querer que se forme melhor, que se considere mais e que se pague melhor os professores.
Realmente, mesmo aqueles que estão convencidos de que a escola deve se adaptar à "vida moderna" e "tornar-se mais eficaz" não estão prontos para elevar o nível de formação e de profissionalização dos professores. Eles mantêm novas expectativas com relação ao sistema educativo, mas recusam-se a admitir que isso custe um centavo a mais. Sua ambivalência tem um duplo fundamento:
Para os idealistas, como eu, o progresso da escola é indissociável de uma profissionalização crescente dos professores. Sejamos lúcidos o suficiente para saber que esse paradigma e os seus corolários, em termos de estatuto, de ganhos, de nível de formação, de atitude reflexiva, de empowerment,1 de mobilização coletiva, de gestão de estabelecimentos e de pensamento crítico, longe estão de obter unanimidade, mesmo entre aqueles a quem o status quo não satisfaz.
Sejamos bastante lúcidos, também, para saber que esse paradigma (profissionalização, prática reflexiva e participação crítica) não corresponde:
É claro que ninguém é indiferente aos benefícios simbólicos e materiais de uma profissionalização crescente, e nenhum professor opõe-se a reivindicar mais autonomia, com a condição de que não tenha de pagar seu preço: acréscimo de responsabilidades, de cooperação, de transparência e, sem dúvida, de trabalho...
Seria uma razão para renunciar ao paradigma do professor reflexivo e crítico? Não acredito. Mesmo se há poucas chances de realizá-lo integralmente, a curto ou mesmo a médio prazo, pode-se contribuir para orientar as reformas da formação inicial, num sentido que prepare o futuro.
Esse paradigma pode parecer ainda mais irrealista nos países que nem mesmo têm os meios de recrutar ou formar de modo suficiente professores simplesmente qualificados. É verdade que os debates internacionais priorizam os modelos que correspondem melhor aos países industrializados. Estaríamos errados, então, se acreditásemos que o desenvolvimento econômico assegura a profissionalização: todos os países de alto nível econômico brincam com essa idéia, mas os progressos são muito lentos. Ao contrário, eu diria que uma das desvantagens das sociedades desenvolvidas é que ela são hiperescolarizadas. O sistema educativo é uma imensa burocracia e uma parte do corpo docente instalou-se numa visão bastante conservadora do ofício.
Pode ser então, paradoxalmente, que os países que devem formar novos professores em grande número, por motivos demográficos ou para desenvolver a escolarização de massa, tenham mais oportunidades de romper com as tradições e consigam inscrever de saída a profissionalização na concepção de base do ofício de professor. Os desafios com que se defrontam os países em desenvolvimento reclamam uma forma de prática reflexiva e de participação crítica, enquanto os países mais desenvolvidos parecem não esperar grande coisa de seus professores, a não ser que dêem aula. No entanto, não sonhemos: a profissionalização, a prática reflexiva e a participação crítica vão além do "saber fazer" profissional de base, mas supõem sua aquisição prévia. Se os países em transformação estão prontos para mobilizar seus professores na aventura do desenvolvimento, nem sempre tem os meios de formá-los...
Certamente, nenhum pensamento mágico resolverá esse problema. Se um país não tem os meios de formar todos os seus professores, pode parecer surrealista defender uma prática reflexiva. De fato, veremos que é menos absurdo do que parece.
Qualquer um que é que projetado numa situação difícil, sem formação, desenvolve uma atitude reflexiva por necessidade. Os professores cujas competências disciplinares, didáticas e transversais são frágeis arriscam-se, no cotidiano, a perder o domínio de sua aula e tentam então desenvolver estratégias mais eficazes, aprendendo da experiência.
Mas que desperdício! Com efeito:
É preciso, então, ancorar a prática reflexiva sobre uma base de competências profissionais. Quais? Tentei descrever dez tipos de competências novas ligadas às transformações do ofício de professor: 1. organizar e animar as situações de aprendizagem; 2. gerir o progresso das aprendizagens; 3. conceber e fazer evoluir os dispositivos de diferenciação; 4. envolver os alunos nas suas aprendizagens e no seu trabalho; 5. trabalhar em equipe; 6. participar da gestão da escola; 7. informar e envolver os pais; 8. servir-se de novas tecnologias; 9. enfrentar os deveres e dilemas éticos da profissão; 10. gerir sua própria formação contínua (Perrenoud, 1999 a). Encontra-se, em anexo, um inventário mais detalhado.
Pode-se discutir, infindavelmente, esse referencial, como qualquer outro. O importante é:
1. Que exista um que suscite consenso amplo ao término de um verdadeiro debate e torne-se um verdadeiro instrumento de trabalho para os estudantes, os formadores e as pessoas do campo (executivos, professores associados).
2. Que se apóie em competências e que considere os conhecimentos, sejam eles disciplinares, profissionais ou advindos das ciências humanas, como recursos a serviço dessas competências mais do que como fins em si mesmos.
3. Que as competências profissionais situem-se claramente para além do domínio acadêmico dos saberes a ensinar, que elas abarquem sua transposição didática em classe, a organização do trabalho de apropriação, a avaliação, a diferenciação do ensino.
4. Que as dimensões transversais do ofício sejam honradas para além de algumas horas de "formação comum", de "pedagogia geral" ou de sensibilização para aspectos relacionais, que os componentes transversais constituam o objeto de aportes teóricos e de aprofundamentos em estágio, do mesmo modo que as didáticas das disciplinas.
5. Que a formação e o referencial de competências considerem toda a realidade do ofício valendo-se de uma análise rigorosa das práticas, em sua diversidade, sem esquecer isso que jamais é dito claramente, mas que pesa terrivelmente na vida cotidiana de professores e de alunos: o tédio, o medo, a sedução, a desordem, o poder etc. (Perrenoud, 1996a).
6. Que o referencial de competências exerça um avanço "otimizador" sobre o estado das práticas, sem fazer dos novos professores pobres kamikazes, condenados a sofrerem com o sarcasmo ou o ostracismo por parte dos professores veteranos; importa dar-lhes os meios de explorar as novas vias abertas pela pesquisa em educação, por equipes inovadoras ou movimentos pedagógicos.
7. Que essas competências sejam susceptíveis de serem desenvolvidas desde a formação inicial, num verdadeiro dispositivo de alternância e de articulação teórico-prática, mas que elas guiem também o desenvolvimento profissional, seja no interior dos estabelecimentos ou no âmbito da formação contínua.
8. Que o referencial seja um instrumento muito claro para sustentar a concepção e a gestão de planos e dispositivos de formação tanto quanto de avaliação de competências efetivas de estudantes ou professores formados.
9. Que a dimensão reflexiva seja prontamente inscrita na própria concepção das competências; que se renuncie então às prescrições fechadas ou às receitas, para propor conhecimentos argutos sobre os processos de ensino-aprendizagem, instrumentos de inteligibilidade de situações educativas complexas e um pequeno número de princípios que orientem a ação pedagógica (construtivismo, interacionismo, atenção dirigida para o sentido dos saberes, negociação e normatização do contrato didático etc.).
10. Que a participação crítica e a interrogação ética sejam constantemente conduzidas de forma paralela, a partir das próprias situações, desenvolvendo um discernimento profissional sempre situado na encruzilhada da inteligência das situações e do cuidado com o outro, isto é, da solicitude da qual fala Philippe Meirieu.
Vê-se, mais claramente ainda com essas últimas teses, que a prática reflexiva e a participação crítica não poderiam se apresentar como pedaços enxertados, e nem mesmo como andares acrescidos ao edifício das competências. São, ao contrário, fios condutores do conjunto da formação, das atitudes que deveriam ser adotadas, visadas e desenvolvidas pelo conjunto dos formadores e das unidades de formação, segundo diversas modalidades.
Meu propósito, aqui, não é desenvolver os dispositivos de formação (Perrenoud, 1996b, 1998c). Basta dizer que as competências profissionais só podem, na verdade, ser construídas graças a uma prática reflexiva e na qual haja participação que se assegure desde o início dos estudos. Em outras palavras, esses dois componentes que foram apresentados até aqui como os objetivos da formação são também suas maiores alavancas: é funcionando numa postura reflexiva e numa participação crítica que os estudantes tirarão o melhor proveito de uma formação em alternância.
O conceito é conhecido desde as obras de Schon (1983, 1987, 1991). Entretanto, apesar dos trabalhos mais centrados na formação de professores, persiste uma confusão entre:
Um sentimento de fracasso, de impotência, de desconforto, de sofrimento desencadeia uma reflexão espontânea para todo ser humano e também para o profissional. Mas esse último também reflete quando está bem, uma vez que haver-se com situações desconfortáveis não é seu único motor; sua reflexão é alimentada também pela vontade de fazer seu trabalho de modo mais eficaz e ao mesmo tempo o mais próximo possível de sua ética.
Num "ofício impossível", os objetivos raramente são atingidos. É pouco freqüente que todos os alunos de uma classe ou de um estabelecimento dominem perfeitamente os saberes e as competências visados. Por isso, no ensino, a prática reflexiva sem ser permanente não poderia se limitar à resolução das crises, de problemas ou de dilemas atrozes. É melhor imaginá-la como um funcionamento estável, necessário em "velocidade de cruzeiro" e vital em casos de "turbulência".
Outra diferença muito importante: um profissional reflexivo2 aceita fazer parte do problema. Reflete sobre sua própria relação com o saber, com as pessoas, o poder, as instituições, as tecnologias, o tempo que passa, a cooperação, tanto quanto sobre o modo de superar as limitações ou de tornar seus gestos técnicos mais eficazes.
Enfim, uma prática reflexiva metódica inscreve-se no tempo de trabalho, como uma rotina. Não uma rotina sonífera; uma rotina paradoxal, um estado de alerta permanente. Por isso, ela tem necessidade de disciplina e de métodos para observar, memorizar, escrever, analisar após compreender, escolher opções novas.
Pode-se acrescentar que uma prática reflexiva profissional jamais é inteiramente solitária. Ela se apóia em conversas informais, momentos organizados de profissionalização interativa (Gather Thurler, 1996), em práticas de feedback3 metódico, de debriefing4, de análise do trabalho, de reflexão sobre sua qualidade, de avaliação do que se faz. A prática reflexiva até pode ser solitária, mas ela passa também pelos grupos, apela para especialistas externos, insere-se em redes, isto é, apóia-se sobre formações, oferecendo os instrumentos ou as bases teóricas para melhor compreender os processos em jogo e melhor compreender a si mesmo.
Por que seria necessário inscrever a atitude reflexiva na identidade profissional dos professores? Responderei inicialmente: para liberar os profissionais do trabalho prescrito, para convidá-los a construir suas próprias iniciativas, em função dos alunos, do campo, do meio ambiente, das parcerias e cooperações possíveis, dos recursos e das limitações próprias do estabelecimento, dos obstáculos encontrados ou previsíveis.
Admite-se, certamente, que a parte do trabalho prescrito decresce, em princípio, num processo de profissionalização. Resta compreender porque essa parte deveria decrescer no ofício do professor. Uma parte dos sistemas educativos ainda apostam numa forma de proletarização do ofício do professor (Perrenoud, 1996c) classificando os professores no que a OCDE chamou de "prestação de serviços"5.
Podem-se enunciar três argumentos em favor da profissionalização:
1. As condições e os contextos de ensino evoluem cada vez mais depressa, fazendo com que seja impossível viver com as aquisições de uma formação inicial que rapidamente se torna obsoleta e que seja mais realista imaginar que uma formação contínua bem pensada dará novas receitas quando as antigas "não funcionarem mais"; o professor deve tornar-se alguém que concebe sua própria prática para enfrentar eficazmente a variabilidade e a transformação de suas condições de trabalho.
2. Se se quer que todos alcancem os objetivos, não basta mais ensinar, é preciso fazer com que cada um aprenda encontrando o processo apropriado. Esse ensino "sob medida" está além de todas as prescrições.
3. As competências profissionais são cada vez mais coletivas no âmbito de uma equipe ou de um estabelecimento, o que requer sólidas competências de comunicação e de conciliação, logo, de regulação reflexiva.
A atitude e a competência reflexivas apresentam várias facetas:
Talvez caiba sublinhar a forte independência desses diversos momentos. A "reflexão na ação" (Schon, 1983) tem claramente, por função:
1. Construir a memória das observações, questões e problemas que são impossíveis de serem examinados em campo;
2. Preparar uma reflexão mais distanciada, do profissional, sobre o seu próprio sistema de ação e seu habitus (Perrenoud, 1998d, 1999d).
Sem entrar aqui na questão dos processos de formação pela prática reflexiva (estudo de caso, análise de práticas, discussões, escrita clínica, por exemplo) cabe sublinhar que ela exige vários tipos de capitais:
Os saberes metodológicos incluem a observação, a interpretação, a análise, a antecipação, mas também a memorização, a comunicação oral e escrita e até mesmo o vídeo, uma vez que a reflexão nem sempre se desenvolve em circuito fechado nem no imediato. Insistirei sobre os saberes teóricos: o bom senso apoiado sobre capacidades de observação e de raciocínio permite um primeiro nível de reflexão. Para ir mais longe, importa sempre dispor de uma cultura em ciências humanas, tanto didática como transversal. Em certos casos, o domínio dos saberes a ensinar é crucial, se este falha, alguns problemas não podem ser colocados. Por exemplo, a interpretação de alguns erros de compreensão é esclarecida pela história e pela epistomologia da disciplina.
Que um professor reflexivo mantenha uma relação de envolvimento com a sua própria prática é o mínimo que se exige, na perspectiva da profissionalização. Aqui, trata-se de uma outra forma de envolvimento, de um compromisso crítico no debate social sobre as finalidades da escola e seu papel na sociedade.
Hoje, um professor relativamente competente e eficaz em classe pode estar ausente de qualquer outra cena:
Cada professor, segundo esses quatro critérios, tem um perfil que lhe é próprio. Entre os que se envolvem em todos os níveis e os que se mantêm a distância de tudo, acham-se práticas diferenciadas. Assim, pode-se trabalhar em equipe sem se preocupar com a política educacional ou pode-se ser militante sindical ou político sem se envolver com o seu estabelecimento de ensino. A participação ativa e crítica, para a qual conviria preparar os professores, se expressaria nesses quatro níveis.
Aprender a cooperar e a atuar em rede. Atualmente, o quadro das atribuições dos professores não os obriga a trabalhar em conjunto, mesmo se coexistem no mesmo andar e se tomam café, todos os dias, à mesma mesa (Dutercq, 1993). A formação deve ater-se ao individualismo dos professores, à vontade de cada um de ser "o único comandante a bordo". Importa trabalhar as representações da cooperação e forjar instrumentos para evitar seus obstáculos a ela e encontrar os usos que lhe são mais oportunos.
Aprender a viver a escola como uma comunidade educativa. O estabelecimento escolar tende a tornar-se uma pessoa moral dotada de certa autonomia. Esta última não tem sentido se o responsável pela escola for o único a beneficiar-se dela, assumindo também sozinho os riscos e as responsabilidades do poder. Se se quer que o estabelecimento se torne uma comunidade educativa relativamente democrática, é preciso formar os professores nesse sentido, prepará-los para negociar e conduzir projetos, dar-lhe as competências para um entendimento relativamente sereno com outros adultos, inclusive com os pais (Derouet e Dutercq, 1997; Gather Thurler, 1998, 2000; Perrenoud, 1999c).
Aprender a sentir-se membro de uma verdadeira profissão e responsável por ela. Nesse nível, a participação não deveria limitar-se a uma atividade sindical, mas estender-se à política de uma profissão emergente. Quando um ofício se profissionaliza no sentido anglo-saxão, que opõe ofício e profissão, os índices mais seguros dessa evolução são um crescente controle coletivo dos profissionais sobre a formação inicial e contínua e uma influência mais forte sobre as políticas públicas que estruturam o seu campo de trabalho.
Aprender a dialogar com a sociedade. Isso ainda é uma outra coisa. Uma parte dos professores engaja-se na vida política como cidadãos. A questão é que eles se envolvam como professores. Não, primeiramente, como membros de um grupo profissional que defende interesses da categoria, mas como profissionais que colocam sua especialidade a serviço do debate sobre as políticas educacionais.
Nesses quatro níveis, é difícil envolver-se salvaguardando uma estrita neutralidade ideológica. Não defendo, entretanto, uma politização extrema dos professores como aquela que existe em certos momentos da história ou em algumas sociedades. Certamente, em caso de guerra, de ocupação ou de tomada do poder por um governo autoritário pode-se esperar que os professores estejam do lado dos direitos humanos e participem da dissidência e da resistência. Todavia, em tempos de paz, uma participação crítica não passa necessariamente por um envolvimento militante, no sentido político da expressão, nem por uma crítica sistemática das opções governamentais. Envolver-se, é em princípio, interessar-se, informar-se, participar do debate, explicar, mostrar. Ora, isso não é óbvio. Faça-se a experiência: escolha um período de debate intenso sobre a escola e tente, num estabelecimento escolar de certo porte, avaliar a proporção de professores que acompanham o debate e até participam ativamente. Que os professores fizessem lobby seria preferível, no final das contas, à grande indiferença de muitos dentre eles quanto às decisões que remodelam o sistema educativo. Talvez a defesa de interesses corporativos seja um primeiro passo para uma participação crítica mais desinteressada.
Essa participação é tanto mais necessária, nesse âmbito, uma vez que as sociedades contemporâneas não sabem mais muito bem quais finalidades destinar à educação escolar. Ouvem-se discursos muito contraditórios sobre a escola. Uns mantêm expectativas irreais e loucas esperanças: restabelecer o vínculo social, lutar contra a violência e a pobreza. Outros perderam toda a confiança e criticam violentamente o sistema educativo: escola ineficaz, esclerosada, burocrática, arcaica, fechada... Onde estão os professores nesses debates? Certamente, descobrem-se alguns nos partidos, nas mídias, alguns fazem carreira, são eleitos, principalmente no nível local. Isto continua sendo uma influência marginal e individual. Enquanto os médicos exercem uma forte influência sobre a concepção da saúde pública e das políticas sanitárias, não se observa nada de equivalente entre os professores.
É seguramente uma questão de status, de poder, de relações de força. É também uma questão:
Sobre esses dois pontos, a formação poderia agir e incitar os futuros professores a sair de sua "passividade cívica" enquanto profissionais da educação.
Como? A operação é delicada, uma vez que não é uma questão de engajar os futuros professores numa visão única da educação. É preciso buscar uma via equivalente a essa messagem "cívica" que se dirige aos eleitores para dizer-lhes: "Vote em quem você quiser, mas vote!"
Mais do que doutrinação, trata-se de análise, de compreensão do que está em jogo. Nesse sentido, uma formação mínima em filosofia da educação, em economia, em história, em ciências sociais não é um luxo, mesmo se esses saberes não são diretamente investidos na aula. Quantos professores não viram nada chegando quando o fascismo instalou-se em seu país? Muitos não tem qualquer idéia do custo real da educação e nem mesmo do seu orçamento. A maioria só conhece rudimentos da história do sistema educativo ou não tem nenhuma visão clara das desigualdades sociais e dos mecanismos que as perpetuam.
Formar para a compreensão dos mecanismos sociais não é neutro, mesmo se se evita doutrinar. Pode-se esperar uma formação equivalente a propósito da cooperação, das organizações e das profissões, temas ainda mais legítimos para futuros professores.
A aposta apresentada aqui é que a participação crítica tem como condições necessárias conhecimentos e competências de análise, mas também de intervenção nos sistemas.
Quanto ao conflito identitário, ele é ainda mais sensível. Seria papel dos institutos de formação defender uma concepção precisa do papel social do professor? Seria seu papel socializar na profissão? Pode-se, no mínimo, exigir debates e tomadas de consciência. Segundo a fórmula de Hameline, pode-se esperar da formação que ela esclareça os futuros professores, os desembarace dessa idéia simples de que ensinar é transmitir um saber acima de qualquer suspeita a crianças ávidas de assimilá-lo independentemente de sua origem social. Lembramo-nos das resistências que o trabalho de Bourdieu e Passeron provocaram entre os professores francófonos nos anos 70, ao colocarem em evidência o papel da escola na reprodução das desigualdades. Hoje, a expressão parece tão banal que se poderia acreditar que ela está integrada. Não é nada disto: a maioria dos futuros professores referem-se à sua formação numa visão angelical e individualista do ofício. Nada garante que eles a abandonarão ao longo de seus estudos, a não ser para jogá-la na rejeição e na negatividade...
A universidade parece ser o lugar, por excelência, da reflexão e do pensamento crítico. Pode-se então ser tentado a dizer que formar os professores segundo esse paradigma é uma tarefa "natural" das universidades.
Todavia, salvo em medicina, engenharia e administração, a universidade não está organizada para desenvolver competências profissionais de alto nível. Mesmo nesses domínios, Tardif (1996) mostra que os saberes disciplinares superam o desenvolvimento de competências. Isso levou algumas faculdades de medicina a operarem uma revolução, introduzindo a aprendizagem por problemas, que coloca a abordagem teórica a serviço da resolução do problema clínico desde o primeiro ano. Gillet (1987) propõe, com o mesmo espírito, dar às competências um "direito de gestão" sobre os conhecimentos, mas essa perspectiva contraria a tendência mais forte das instituições de tipo escolar: criar cursos, multiplicar os saberes reputados como indispensáveis e deixar para os estágios ou o trabalho de fim de curso ou a alguns trabalhos práticos o cuidado de desencadear sua integração e sua mobilização.
Por isso é que não se pode eleger, sem uma análise, a universidade como o lugar ideal da formação de professores. Mesmo no que concerne à prática reflexiva e à participação crítica a dúvida metódica se impõe.
A prática reflexiva não é uma metodologia de pesquisa
A formação para a pesquisa, própria das carreiras universitárias de 2º e 3º ciclos, não prepara ipso facto para a prática reflexiva. Devemos nos render à evidência: quando ensinam, os pesquisadores podem, durante anos, entediar seus alunos, perder-se em monólogos obscuros, ir muito rapidamente, mostrar transparências ilegíveis, organizar avaliações arcaicas e assustar os alunos pelo seu nível de abstração ou sua pouca empatia ou senso de diálogo. Isso tanto pode sugerir um grande desprezo pelo ensino quanto uma fraca capacidade reflexiva aplicada a esse trabalho.
Mais seriamente, mesmo se há pontos comuns (Perrenoud, 1994a) pesquisa e prática reflexiva apresentam também grandes diferenças:
A universidade então não pode, só pelo fato de que ela inicia para a pesquisa, pretender formar profissionais reflexivos, além de tudo. Se quer fazê-lo, deve desenvolver dispositivos específicos: análise de práticas, estudos de caso, vídeo-formação, escrita clínica, técnicas de auto-observação e de esclarecimento, treinamento para o trabalho sobre o próprio habitus e sobre seu "inconsciente profissional" (Paquay et al., 1998).
Certamente, a formação para o espírito científico, para o rigor, para a atitude descentralizada de si, constitui trunfo que a universidade pode pôr a serviço da formação de professores. Igualmente, de acordo com a concepção de pesquisa e de método que se tenha, as divergências e convergências com a prática reflexiva se modulam. Tomemos dois exemplos:
1. Se a universidade se preocupasse mais em formar "pesquisadores reflexivos" encontrar-se-iam numerosas convergências, mas a preparação metodológica é infelizmente, em geral, mais localizada no eixo do tratamento dos dados do que sobre a negociação com o campo e a regulação de atividades e do trabalho. Na representação que se dá aos estudantes, a atividade concreta de pesquisa é muito mitificada e reduzida ao método. Fala-se pouco das relações de poder, das dimensões narcísicas, da concorrência, da parte do acaso e do inconsciente, da vida concreta nos laboratórios (Latour e Woolgar, 1988). Expurga-se, então, da realidade do trabalho, tudo o que exige uma reflexão tática, ética, identitária, financeira e prática, fazendo como se os pesquisadores vivessem num mundo de idéias puras, sem contingências materiais, nem paixões humanas. Toda consideração do trabalho real revelaria parentescos entre o ofício do professor reflexivo e o do pesquisador reflexivo...
2. Se a universidade reconhecesse mais a importância do contexto da conceituação e da descoberta para a construção da teoria, mais do que focalizar sobre os métodos de tratamento de dados e de validação, ela desenvolveria melhor a atitude reflexiva. Ela estimularia a imaginação sociológica (Mills, 1967) mas também didática, pedagógica, psicanalítica, das quais o professor reflexivo tem necessidade para "ver as crises banais e familiares de outro modo", reenquadrar os problemas, deslocá-los mentalmente, operar "rupturas epistemológicas".
Em outras palavras, um seminário de pesquisa, de acordo com o modo pelo qual é concebido e conduzido, pode colocar os estudantes no coração de uma prática reflexiva ou formá-los como pequenos soldados da ciência. Enquanto se formar os estudantes para a pesquisa fazendo-os recolher e sistematizar dados em função de hipóteses de pesquisa para cuja definição eles não contribuíram, se manterá a ilusão de que se forma pesquisadores quando, na verdade, se treina técnicos.
Há aí um duplo desafio:
1. Ampliar a concepção de pesquisa e de formação para a pesquisa, em especial, nas ciências humanas. A distância entre essa formação e o desenvolvimento de uma atitude reflexiva depende dessa ampliação.
2. Criar, nos cursos universitários, dispositivos que visem, especificamente, a desenvolver a prática reflexiva, independentemente da pesquisa. Esses dispositivos poderiam também contribuir para formar os pesquisadores, mas, de início, seriam postos a serviço de um profissional engajado em uma ação complexa.
Essas duas condições não bastam. A prática reflexiva só pode tornar-se uma "segunda natureza", em outras palavras, incorporar-se ao habitus profissional, caso esteja no centro do plano de formação e se estiver integrada a todas as competências profissionais visadas, tornando-se o motor da articulação teoria-prática. Isso tem grandes conseqüências para:
Então, não se trata somente de desviar os percursos de formação que levam ao domínio das ciências da educação, mas criar todas as etapas de novos percursos de formação que se pode perfeitamente imaginar no quadro das faculdades, sem fazer guetos ou "escolas dentro das Universidades", sem renunciar a formar para a pesquisa e preparando, como em todas as carreiras acadêmicas dignas desse nome, as transições para o terceiro ciclo e o doutorado. (Perrenoud, 1996b, 1998c).
Da crítica radical à participação crítica
A universidade parece a priori o lugar privilegiado de um olhar crítico sobre a sociedade, em favor da autonomia e da extraterritorialidade (relativas!) atribuídas às universidades desde a Idade Média. Ainda aqui algumas nuanças se impõem:
Essas duas figuras da universidade não correspondem à concepção da participação crítica desenvolvida acima. Não basta que a universidade seja politizada para pretender desenvolver uma participação crítica.
Por outro lado, a atitude dos professores não se transmite magicamente aos estudantes. Para que a participação crítica se torne um componente do habitus profissional dos professores, da mesma maneira que a atitude reflexiva, não basta confiar na essência da instituição, é preciso instaurar dispositivos de formação precisos e desenvolver competências fundadas sobre saberes oriundos das ciências humanas.
As ciências da educação e as práticas
No centro do debate, acha-se a concepção das relações entre as ciências humanas e as práticas educativas. Se formar professores é um simples serviço prestado à comunidade ou até mesmo um meio de ampliar o orçamento acadêmico para investir o excedente no terceiro ciclo e na pesquisa, pode-se duvidar de que a universidade seja o local ideal para formar os professores.
Ao contrário, se tornar as práticas inteligíveis está no centro do programa teórico das ciências da educação, quer se trate de políticas educacionais, da gestão dos estabelecimentos escolares ou do trabalho em classe, então formar os professores e os técnicos e dirigentes escolares é um formidável trunfo para a pesquisa fundamental. Efetivamente, a formação profissional obriga a validar e a aprofundar as teorias, até que elas se tornem dignas de crédito e utilizáveis. Se os trabalhos dos pesquisadores em educação freqüentemente fazem sorrir uma parte dos professores, é porque eles testemunham um desconhecimento da realidade escolar no cotidiano, que torna insuportável seu discurso, quer ele seja crítico, prescritivo, idealista ou teórico...
Além disso, como cruzamento interdisciplinar, as ciências da educação só se sustentam juntas pela sua referência comum a um campo social, a um sistema e a práticas complexas. Para além da ambição interdisciplinar, o engajamento nas formações profissionais é a forma mais segura de fazer com que, não somente coexistam, mas trabalhem juntos, psicólogos, historiadores, sociólogos, antropólogos, psicanalistas da educação, quer seja no quadro das didáticas das disciplinas ou das abordagens transversais.
Estou convencido de que as ciências da educação têm tudo a ganhar ao formar os profissionais da educação e que elas podem chegar a isso sem fazer concessões teóricas ou epistemológicas. É uma condição necessária para que a inserção da formação dos professores na universidade tenha sentido. Se os universitários vivem a formação profissional como um mal necessário, um preço a pagar, um modo de desviá-los de suas pesquisas, a formação só pode se tornar medíocre. Ela será confiada a professores que não têm outra escolha, orientados por alguns militantes.
Então é muito importante saber por que a universidade quer formar professores. Se é por razões claramente ligadas a sua identidade e articulada à construção de saberes e se ela está disposta a conceber os percursos de formação profissional superando seus hábitos e tradições didáticas, então certamente ela é o lugar apropriado.
Se, ao contrário, a universidade quer se ocupar da formação de professores apenas para não abandoná-la a outras instituições ou para ampliar seu público, obter subvenções ou prestar um serviço, então é preferível confiar a formação a institutos que não terão vergonha de formar profissionais.
Desejo vivamente, como se pode perceber, que as universidades ultrapassem esse estágio. Algumas o têm feito há décadas, mesmo tendo de defrontar-se com o "retorno do recusado", isto é, o peso dos saberes, as formas acadêmicas de sua transmissão e o desprezo pelas práticas.
O que seria indefensável seria pretender formar os professores sem dar-lhes os meios. É por isso que o desenvolvimento de programas de formação de professores deveria ser objeto de parcerias sólidas e equitativas com o sistema educativo.
Não é anormal que, para reconhecer as formações, os ministérios imponham condições quanto ao perfil profissional e à qualidade das formações. Em contrapartida, eles devem engajar-se em facilitar a articulação teoria-prática. Não basta, no entanto, obter o acordo das instituições. Importa que a parceria estenda-se a associações representativas da profissão. Se os poderes organizadores podem encontrar os locais de estágio e até mesmo designar autoritariamente os conselheiros pedagógicos ou os supervisores de estágios, uma formação de qualidade só pode funcionar à base do voluntariado de professores formadores em campo, de um consenso sobre a concepção de formação e de um engajamento coletivo em favor da profissionalização do ofício.
A universidade teme tais parcerias que podem sujeitá-las à "demanda social" e restringir sua independência. Na formação profissional, a parceria é incontornável e oferece, além disso, uma oportunidade única de construir percursos de formação defensáveis, ao mesmo tempo acadêmicos e profissionais.
Em conclusão, eu diria que se a universidade é, potencialmente, o melhor lugar para formar os professores para a prática reflexiva e a participação crítica, ela deve, para realizar esse potencial e provar sua competência, evitar toda arrogância e se dispor a trabalhar com os atores em campo. Em contrapartida, os ministérios, as associações, as comissões escolares, os estabelecimentos escolares e outros poderes organizadores deveriam esforçar-se, por seu lado, para abrir e manter um diálogo que não negue as diferenças!
Desse ponto de vista, a realidade atual oferece um vasto caleidoscópio, inclusive no interior de um só país. Enquanto algumas universidades estão muito próximas de um modelo centrado sobre a prática reflexiva e a participação crítica no coração das ciências da educação, outras lhe são antípodas. Seria um erro, portanto, simplificar o quadro. De fato, todos os dilemas e todas as contradições do ensino superior se refratam na questão do papel das universidades na formação dos professores.
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1 Em inglês, no original. Significa "investimento de poder" (N. E.).
2 "Praticien réflexif", no original. (N. E.)
3 Em inglês, no original. Significa "retroalimentação". (N. E.)
4 Em inglês, no original. Significa "responder a interrogações após a realização de tarefas". (N. E.)
5 "Livraison de services", no original. (N. E.)
6 Département de lInstruction Publique, nome dado ao órgão responsável pela Educação em alguns cantões suíços. (N. T.).
Philippe Perrenoud, sociólogo e antropólogo, é professor da Université de Genève, Suíça, na área de currículo, práticas pedagógicas e instituições de formação. Seus trabalhos sobre a construção das desigualdades e o fracasso escolar o levaram a se interessar pela "profissão" de aluno, pela profissão e formação de professores, pelos processos de inovação e pelas políticas educacionais. Publicou inúmeras obras, sendo que oito delas encontram-se traduzidas para o português. O último livro traduzido é Dez novas competências para ensinar (Porto Alegre: Artmed, 2000).
Competências de referência |
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1. Organizar e coordenar as situações de aprendizagem |
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2. Gerir a progressão das aprendizagens |
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3. Conceber e fazer evoluir dispositivos de diferenciação |
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4. Envolver os alunos em sua aprendizagem e seu trabalho |
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5. Trabalhar em equipe |
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6. Participar da gestão da escola |
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7. Informar e envolver os pais |
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8. Servir-se de novas tecnologias |
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9. Enfrentar os deveres e dilemas éticos da profissão |
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10. Gerir sua própria formação contínua |
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